terça-feira, abril 14, 2009

Antônio Fraga: uma obra e um autor em busca de abrigo

Eu sempre parto do final, só o mau escritor parte do início.

Eu tenho um objetivo e quero alcança-lo.

Antonio Fraga em seu aniversário (1990), com a autora.Antônio Fraga

Talvez, não faça parte do mundo acadêmico explicar o título de um trabalho, mas no meu caso – ou melhor, no caso de Antônio Fraga – a questão é justificável pelo quase anonimato do autor e pelo quase ineditismo da obra.

Fraga parte em setembro de 1993. Deixa-nos duas obras publicadas – a novela Desabrigo (1942) e o poema dramático Moinho e (1957), alguns contos, crônicas, ensaios, divulgados pela imprensa oficial e alternativa, e ainda muitos trabalhos inéditos: uns concluídos, outros inacabados – todos desordenados, espalhados em papéis avulsos pelo improvisado escritório na Baixada Fluminense, para onde migra nos anos 60.

Quando Fraga sai definitivamente de cena, grande parte desse acervo é encaminhado à Fundação Casa de Rui Barbosa. Rebeldes, como o próprio autor, alguns manuscritos, registros e documentos pessoais relutam em seguir o destino dos demais, “escondem-se” e, de doação em doação, terminam em minhas mãos. Não consigo resistir aos apelos das personagens da vida e da ficção fraguiana; afinal, desde 1986, um pouco antes, por ocasião da escritura da dissertação de Mestrado e depois da tese de Doutorado, partilho suas histórias e, tantas vezes, com minha leitura, nelas interfiro. Acho, de vez em quando, que abdico de ser crítica ou teórica para inscrever-me, no texto de Fraga, como personagem a quem é atribuída a tarefa de revolver seu baú, organizar seus escritos e buscar editores que abriguem sua obra e propiciem, pela recepção dos leitores, o seu reconhecimento literário.

Nas ruas Senador Euzébio e São Pedro, Antônio brinca sua meninice. De uma rua próxima, Visconde de Itaúna, vem o som popular das rodas de samba. Lá, no número 117, mora Hilária de Almeida, Tia Ciata. O tempo célere desliza pelas ruas do menino e, logo, a separação dos pais, em 1932, lança-o na vida. Aos 16 anos, sozinho, resolve seguir rumo próprio. Vai para o Mangue onde vende siri e bugigangas úteis ao “pedaço”. Pelo andar ziguezagueante recebe o apelido de Cobrinha, personagem da novela Desabrigo, obra que expressa nossa identidade e aproxima a língua falada da língua escrita. Data desse tempo o início da escritura da mitologia marginal de Fraga e do recolhimento da matéria-prima que usa dez anos depois, em 1942, na criação de sua primeira obra, Desabrigo, publicada em 1945, quando finda o Estado Novo.

As primeiras investidas de Fraga no mundo das letras ocorrem em versos. São exercícios de aprimoramento métrico, de escolha e (re)conhecimento das palavras. São transbordamentos de um artista quando jovem. Anos depois, ele revela seu dom, pega o tom, capta os sons que emanam da vida e organiza sua carpintaria poética, sua prosa de arte.

Na primeira metade da década de 40, a inquietude e a insatisfação em relação à Segunda Guerra Mundial e à ditadura do Estado Novo movem a produção intelectual brasileira que, pelas sombras das crises e talvez incitadas por elas, brota profícua e fluente em artigos, em depoimentos, em crônicas, na ficção, na pintura e nos bate-papos entabulados nos cafés, nos bares, nas leiterias, nas livrarias da Cidade do Rio de Janeiro. Década elástica que, sob a locução “de 45", aglutina uma geração de múltiplos perfis, que do final dos anos 30 até meados de 50, revigora o modernismo, então em fase de saturação, e consolida em prosa e verso suas propostas de renovação e de pesquisa estética.

Nos anos 40, quando o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, é o centro cultural do país, Fraga, andarilho irreverente, circula por diferentes espaços do centro carioca que – numa geografia própria de boêmios, intelectuais, artistas, malandros – se estende da Taberna da Glória até botecos e cafés do Estácio, do Mangue e da Praça Onze.

Nesses idos, os pontos de encontro são definidos pelos freqüentadores. A turma da esquerda – principalmente escritores, jornalistas, estudantes, educadores como Anísio Teixeira, Mário Pedrosa, Vinícius de Moraes, Paulo Mercadante, Antônio Olinto, Ledo Ivo, Anibal Machado, Jorge de Lima, Hildon Rocha – transita do Amarelinho ao Vermelhinho. O pessoal de teatro – Dulcina, Procópio, Conchita – prefere o Douradinho, na Rua Álvaro Alvim. Os pintores, cenógrafos e afins – Pancetti (Giuseppe Gianini), Djanira da Mota e Silva, Santa Rosa, Milton Ribeiro, Milton da Costa –, de cavalete, pincel e tinta, “pintam” no Café Gaúcho, na Rua São José. O grupo da música – os que compram e vendem composições e/ou os que gostam de música, como Ismael Silva, Mário Lago, Chico Alves, Grande Otelo – aparece sempre pelo Café Nice, na Galeria Cruzeiro, na esquina da Avenida Rio Branco com Bittencourt Silva. Os escritores adoram as tardes de autógrafo na Livraria São José, na Rua São José, promovidas por Walter Alves Cunha e Carlos Ribeiro. Há ainda um grupo de artistas que costuma ir à Lapa (ao Capela, ao Bar México, ao Café Indígena, ao Danúbio Azul). Alguns, por divertimento só; outros para viver a Lapa, para contracenar com aqueles que são seus personagens. Aí se encontra Fraga e, mais tarde, um outro Antônio – o João. Nos anos 40, João ainda é um meninão de calças curtas. A Lapa não faz parte de sua geografia. O mapa de sua infância limita-se as ruas do bairro pobre de Presidente Altino, na Cidade de São Paulo. A ideologia torna-os contemporâneos. Eles têm mais que um nome em comum: são amigos de bar, de copo, de sinuca, de tema. Amigos de vida e de ficção.

Autodidata, poliglota, leitor compulsivo, Fraga rompe as barreiras acadêmicas; saracoteia de um lado para outro; vive intensamente a década de 40 e participa, meio como dissidente, dessa geração à qual cronologicamente está vinculado. Num início de manhã, na Lapa, em janeiro de 1945, Fraga sugere a Antônio Olinto a criação do Grupo Malraux. Ali mesmo escolhem os integrantes do grupo: Luciano Maurício, Levy Menezes, Hélio Justiniano, Ernande Soares, Aladyr Custódio, José Galdino, além deles mesmos, os Antônios – Fraga e Olinto. Dias depois, no Vermelhinho, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, decidem apresentar o grupo por meio de uma exposição de poesia: a primeira do mundo. Há um catálogo com curta biografia dos expositores e com um dos dez poemas que cada membro do grupo iria expor. Em 10 de maio de 1945, na Escola Nacional de Belas Artes, sem querer, dois dias após a queda do hitlerismo, a exposição é inaugurada. Carlos Drummond de Andrade elogia o pioneirismo do evento em “Poetas em maio”, crônica publicada pela revista Leitura, da qual Fraga se torna assíduo colaborador.

Desenho de Antonio Fraga, 1982.Finda a exposição, urge que outro evento dê continuidade à atuação do grupo. Por unanimidade, Desabrigo é escolhido como obra capaz de traduzir e de registrar o grito de uma geração abafado pelos sons bélicos e repressivos advindos do contexto nacional e mundial. Desabrigo fica, desde então, como manifesto de uma geração – pelo menos parte dela – cujos escritores desejam, por viéses diferentes, tornar o discurso ação e, assim, mudar o mundo. Antônio Olinto, em depoimento concedido na época da escritura de minha tese de Doutorado, recorda:

Quando o lancei, na Editora Macunaíma, que Ernande Soares e eu fundamos, com o próprio Fraga de sócio, sabíamos que se tratava de uma novidade literária (...).Alugamos uma pequena sala na Rua São José, 21 – no local em que antes funcionava o Instituto Superior de Preparatório – e, depois do necessário orçamento, mandamos os originais a uma oficina quase artesanal no centro do Rio de Janeiro (...). Lembro-me ainda de quando, entre maio e junho de 45, assim que recebi meu ordenado, fui à oficina quitar a impressão. Reunimo-nos no Vermelhinho para a comemoração; afinal, ali estava a história de Fraga posta em livro.

Assim, Desabrigo literalmente vai à praça. Em 1945, Fraga assume uma atitude semelhante àquela que anos mais tarde identifica a Geração Mimeógrafo: como poucos livreiros quiseram comprar sua novela, ele resolveu vendê-la nos bancos da Cinelândia. É o próprio Fraga quem relata esse fato ao jornal O Globo, em 8 de novembro de 1978:

Fui para Cinelândia, botei os livros num banco e comecei a vender ao povo. Ao lado do banco coloquei um cartaz: um livro, cinco mil réis; dois livros, quatro e um livro autografado somente mil réis. Considero uma bobagem esse negócio de autógrafos. O que vale é a obra. A assinatura de um homem não vale nada.

Muitos caminhos, sem dúvida, conduzem a Fraga. Muitas vozes – contemporâneas ou não – dialogam com seus textos. Seus escritos contemplam muitos ismos. Palavras, expressões e rótulos hodiernos como estudos culturais, interdisciplinaridade, pluralidade, modernidade pós-modernidade são passíveis e possíveis de serem discutidos a partir de seus textos. Como se trata de uma apresentação, escolhi Desabrigo – livro inaugural, livro síntese de uma obra que seria tecida ao longo do tempo, anonimamente, à margem de editores, de críticos e de leitores. Em Desabrigo, estão todos os “ingredientes” – mecanismos e procedimentos literários – com os quais o porta-voz da marginalia elabora suas poções mágicas ou suas composições poéticas.

Essa “quasi-novela” abriga três divisões cujos títulos – primeiro round, segundo tempo e terceiro ato – sintetizam a idéia principal dos seis episódios ou contos flagrantes que compõem cada parte da novela. Esses episódios são como peças de um jogo de armar: atritam-se pelas páginas do primeiro round e pelos espaços periféricos do Rio de Janeiro de outrora; depois aproximam-se e possibilitam, no segundo tempo, o entendimento da “arte” do jogo, da literatura; e, no palco da vida, já no terceiro ato, juntam-se e produzem o sentido do texto, de Desabrigo: novela curta, episódica que focaliza instantâneos de personagens marginais, num espaço e tempo determinados – o Rio boêmio da década de 40.

A novela narra-se, pois expõe ao leitor os bastidores da criação literária e/ou a efervescência interior do escritor em estado epifânico. O autor simula a criação de uma novela dentro da sua e elege Evêmero, personagem e pseudo-autor, como seu procurador. Imbuído de tal atribuição, cabe a Evêmero não só a autoria da novela que se está lendo, mas também o papel de crítico que defende seu ponto de vista sobre a construção da história pelo discurso que lhe é coerente. Evêmero é efêmero, cá no texto de Fraga, cumpre a execução do projeto da novela e bate “a bota em mil-novecentos-e-quarenta-e-dois. Semanas antes de bater ele disse não sei onde nem quando”, o único ponto de vista original, feito para legitimar o livro que pretende escrever e que está sendo escrito sob os olhos do leitor: vou escrever ele todo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente Os anatoles vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a ausência de pontuação ou fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo não tenha de modo nenhum que dar satisfações a qualquer sacanocrata não acha? (Desabrigo, p.16-7)

Os pontos de vista, que entremeiam os contos flagrantes dos momentos primeiro e terceiro da novela, não estão vinculados à perspectiva narrativa tradicional. Exceto o de Evêmero, os demais são fragmentos colhidos e deslocados da obra de outros autores que, inseridos em Desabrigo, contemplam o intuito de Fraga: discutir a participação da voz dos excluídos – prosaica, fluida, despida de censura – no coro literário. Pela autoria e pela linguagem formal, esses pontos de vista evidenciam com seu parecer – favorável ou não – a erudição do nosso forasteiro literário e a validade de sua obra.

Há seis pontos de vista: três, no primeiro round; três, no terceiro ato. Os pontos de vista – primeiro e terceiro, respectivamente, de Campos de Carvalho e de José Guerreiro Murta não aceitam o linguajar do povo, o uso da gíria e da linguagem trivial no discurso literário. Os outros, contextualizados no terceiro ato, são apropriações de fragmentos de textos de Azorín, Henri Bauche e Luigi Pirandello. Há, nessa última parte da novela, uma comunhão ideológica que estabelece uma harmoniosa relação intertextos, isto é, entre o texto centralizador, no caso Desabrigo, e a unidade textual deslocada. Esses pontos de vista, introduzidos pelo narrador no curso da narrativa, tanto mostram a coerência entre a obra em si e o questionamento que se realiza pelas suas páginas, como torna a crítica – que, normalmente, só tem função fora da obra e após sua conclusão – parte do texto e, como tal, cúmplice do discurso que o constrói.

No primeiro round, a trama principal é a briga entre Oscar Pereira, vulgo Desabrigo, e seu desafeto Amauri dos Santos Silva, conhecido na Zona do Canal do Mangue e redondezas como Cobrinha. Todos os episódios estão de alguma forma ligados a essas personagens. A cena de banzé – no boteco de Coisada – pára quando ele mostra a Cobrinha o jornal que noticia, sob o título sururu no Mangue, a briga entre este e Desabrigo. O foco desloca-se para Desabrigo. Na porta do barraco de Durvalina, sua preferida, ele “escola a pivetada”, contando as façanhas de seu pai: tocador de cuíca, mulherengo, malandro, capanga de Pinheiro Machado. A cena primeira continua em palpites. No Café Bar e Bilhares Flor do Estácio, Desabrigo, chateado com a carta de rompimento de Durvalina, esconde-se no W. C. para evitar novo confronto com Cobrinha, mas a briga repete-se. O primeiro round só termina menos tenso porque um camelô aproveita o ajuntamento e usa todos os malabarismos verbais para vender a Loção Mercúrio.

No segundo tempo, Evêmero chega ao Mangue para conhecer por dentro a vida que deseja tornar ficção: um livro “sobre todo vagabundo e mulher da vida” (D. p. 32) – um texto prosaico, com gírias, sem preocupações ortográficas ou sintáticas. Esse livro, almejado por ele, já começou a ser contado por um narrador em terceira pessoa, no primeiro round, mas só é escrito por Evêmero na última página. Os truques usados por Fraga conferem à novela caráter (meta)ficcional e são-nos revelados pelo narrador:

Naquele dia anatole tava mais pesado que desabrigo na página dezenove (Loção Mercúrio) desta quasi-novela. (Desabrigo, p. 29)

Nessa parte da novela, não há ponto de vista. Evêmero já externou o seu e o está pondo em prática – a escritura dessa novela. Anatole, que percebe e condena as intenções daquele, sai de bonde pelas linhas do livro e deixa Evêmero livre para documentar “a vida e o patuá” do marginal “gostorrento como quê” mas que incomoda os “sacanocratas e beletristas”, como Anatole.

(...) Eis senão quando para evitar repetições o autor resolveu botar um bonde nestas linhas Botou Então anatole aproveitou e disse que ia tomar aquele bonde porque tinha um encontro urgente marcado na cidade (...) ( Desabrigo, p. 30 ).

De outro bonde (ou será o mesmo?), Cobrinha, o valentão do primeiro round, salta floreado, de costas sem pagar passagem e dá uma banana para o trocador. Banana lembra comida. A fome embaralha a vista, o fonema e o paladar, e ele come “a mão como se fosse mamão” (D. p.30).Miquimba, atrasado no sexo e na comida, leva um fora da Neguinha, todavia defende a comida no jogo de bilhar, enganando Desabrigo. Mais adiante, Miquimba acode “uma vítima do álcool (Evêmero) que vai ser afanada por uma vítima de si mesmo (Cobrinha),” (D. p.33) em troca recebe a caridade sexual da manicura. Evêmero, em estado etílico, nada percebe e continua contando para o poste – estrangeiro, puritano, cheio de complexo de superioridade: “Sabe seu poste? Vou escrever um livro bom à beça...” (D. p. 34) Durvalina, esquecida da navalhada que Desabrigo levara no rosto, deseja tirá-lo da prisão onde se encontra desde a segunda briga com seu desafeto.

O terceiro ato começa quando “tava chegando o carnaval de 42” (D .39). Cobrinha encontra Coisada numa batalha de confete, na Praça Onze. Por lá, passa um cordão, “cantando o samba maioral de 42” (D.p.46).O samba é de Cobrinha e fora-lhe roubado no Nice. Desabrigo, instruído por Miquimba, passa o conto no vigário, passa o conto do vigário, ludibria- lhe com uma triste história, envolvendo jóias de falso valor, é ilaqueado pelo padre e por Miquimba e, de novo, vai parar na cadeia. As vozes de Pirandello e de Nietzsche entrecruzam-se no final do terceiro ato. O último ponto de vista, trecho de Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello, precede o eterno retorno.Evêmero – um autor em busca de seus personagens – procura pelo cenário e pelas personagens de sua novela. Não os encontra. O Rio de Janeiro apresenta sensíveis modificações em sua geografia física e social. A Avenida Presidente Vargas desmonta a Praça Onze, parte do Mangue e outras construções, também, vão, em ritmo acelerado, descaracterizando palcos por onde zanzam Desabrigo, Cobrinha, Durvalina, Miquimba, Margô e seus pares na vida e na ficção. Dispersos, soltos pelas ruas de um Rio, com nova face, as personagens perdem o rumo do texto e Evêmero não sabe o que fazer.

“Então uma voz que vinha passando e que se chamava verbo”, (D. p.45) responde criticamente a uma das interpelações de Evêmero, usando um discurso espontâneo, jocoso, bem coadunado com o espírito da obra, com o comportamento e com a fala das personagens. Se “no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”, o verbo, na novela, numa acepção profana, é o criador, Antônio Fraga. Ele cobra, de certa forma, de Evêmero (ou será de si próprio?) a criação de um texto capaz de reunir as personagens, de libertar Desabrigo e de reconstruir um Rio atropelado pelo progresso. “Evêmero então foi indo para casa e foi pensando É preciso fazer alguma coisa – agir agir...” (D. p.50).É preciso ler esse momento, registrá-lo, torná-lo texto, pois “sacanocratas ensangüentavam o horizonte como um novo sol” (D.p.50).Meia-noite. “rodas de bonde chiavam em sua imaginação”.(D. p.50) o bonde que tantas vezes passa pelas linhas do livro traz a inspiração. “Evêmero arregaçou as mangas da camisa (metralhadoras metralhadoras metralhadoras) e metralhou na reminton” (D.p.50) a novela. É o eterno retorno. É a volta diferente, pois prenhe de novas experiências acumuladas no caminho de ida e de volta, ou nas leituras dos textos e do mundo. O começo é também o fim, ou vice-versa: forma espácio-circular recorrente na obra de Fraga. O fim e o começo imbricados unem a vida à ficção, traçando um ciclo em que o devir assinala o não-fim.

Vozes sobre vozes num eterno retorno do diferente mostram o papel da intertextualidade na produção artística, notadamente neste século: produzir um discurso em que vários textos se contextualizam no texto aglutinador, sem perder sua memória primeira. O ritual intertextual exige uma determinada coerência entre texto/contexto de onde expressões, nomes, citações e idéias foram deslocados e o texto/contexto marginal em que agora se inserem.

Fraga declara por Evêmero seu propósito de escrever um livro sobre o espaço urbano- marginal, sem academizar o falar malandro nem o fluxo de seu pensamento transmitido pelo narrador. Sua novela é permissiva, nela cabem todos os deslizes comuns à fala, principalmente, à de um segmento social que quase nunca possui o domínio da língua culta. Em todo o livro, exceto nos pontos de vista, ele não utiliza a vírgula, os dois pontos e o ponto final; contudo demarca a pausa com iniciais maiúsculas, usa reticências, ponto de exclamação e de interrogação. Os nomes próprios nada valem, logo devem ser grafados com minúscula. Sua redação, distante das regras gramaticais, revela plena sintonia entre o discurso e a vida de personagens cotidianos, despidos de heroicidade. Assim, mescla o discurso da rua (episódios em si) com o da academia (pontos de vista), fá-los bailar em nova coreografia frasal e em nova sonoplastia vocabular. Com seu olhar-câmara, o autor de O louva-a-deus, romance inédito, redimensiona as primeiras propostas modernistas de 22 e de 30, emprestando-lhe um novo enfoque calcado na sua vivência e na sua potencialidade ficcional. Substitui o culto do folclore pela valorização da fala e da existência daqueles que vivem à margem. Assim, extrai as raízes de nacionalidade de um outro solo, tão fértil, tão brasileiro e, até tão marginal quanto o solo de onde emergiram o negro, o índio, o nordestino, o caipira.

O debate acerca da linguagem, presente nos primeiros textos modernistas – de manifestos ou de ficção – é exposto verbalmente em Desabrigo: de um lado, salvo o de Evêmero, a linguagem da tradição, do poder mostrada nos pontos de vista; de outro lado, a voz da marginália que infringe os padrões lingüísticos pela espontaneidade da gíria, da linguagem obscena e pela desarticulação da sintaxe que denota o próprio comportamento social e opõe-se à linguagem da tradição. Convite ilustra reconhecimento do povo de QueimadosDesabrigo fica, no nível ficcional , como um manifesto modernista, que torna a literatura assunto de si mesma.

A intertextualidade é um meio pelo qual o autor mobiliza um coro de vozes – afinado ou não com a escritura deste século – para produzir um eco uníssono, que, mesmo desafinado ideologicamente, abra novas perspectivas formais, rompa com os ismos anteriores ou aclimate-os ao agora e pregue, até por opiniões adversas, uma linguagem literária nossa, comprometida com todos os segmentos sociais, inclusive com aqueles postos quase sempre à margem.

Tudo explode ao mesmo tempo. É tempo de guerra no mundo. É tempo de Estado Novo no Brasil.Os barulhos coincidem. A novela está sendo datilografada. Máquinas destroem casas, dispersam malandros e prostitutas. A construção da Avenida Presidente Vargas abre uma nova trilha para o centro do Rio de Janeiro. “Metratrabalhadoras” ideologizam um novo tempo, marcado pelo culto do trabalho, sem espaço para a coreografia da malandragem. Metralhadoras sonorizam o segundo round bélico do mundo em ruínas. A arte coloca em cena uma época e um século conturbado, em que seres marginais, ficcionais ou históricos, aparecem como eternos pingentes da sobrevivência.

A violência marca presença no livro: a briga entre Cobrinha e Desabrigo ratifica o malandro bambambã, destemido. A luta, travada entre esses elementos produtores da linguagem malandra, mostra o desejo do autor de chocar beletristas, sacanocratas com uma obra que ataque as normas gramaticais, o decoro público e todos aqueles que não revelam o negativo da vida. As prostitutas, nomeadas na obra ou anônimas, são obrigadas a deslocar-se e espalham-se para o centro o que causa protestos na sociedade burguesa, pseudomoralista; outros prostitutos, os da guerra, oriundos de várias partes do mundo, lutam e “doam” seu corpo em prol de uma causa que desconhecem e de um poder que jamais lhes pertencerá.

A vida e a ficção patrocinam o espetáculo: mães clamam pela volta dos filhos que partiram para a guerra; Evêmero procura pelas suas personagens, dizimadas na área periférica do Mangue em prol do progresso e da moral, ou encarcerados numa folha de papel por ajudarem a um escritor “que tava se devorando para se conservar” (D. p.50).

Desabrigo é um texto literário cercado de outros textos. Por suas páginas circulam termos e expressões populares provenientes de um texto pulsante, falado e composto de forma coletiva na vida. Antônio Fraga usa a paráfrase devido à identidade que o aproxima do linguajar do povo. Pela literatura, deseja estabelecer uma continuidade desse discurso que aborrece e contesta o poder. A paródia é a própria finalidade desse discurso na vida e na ficção: desconstruir e corroer o discurso oficial e todas as normas que por ele são instituídas. Desabrigo é fragmento de uma obra maior, construída pelo povo na rua, no dia a dia.

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‎"O que mata as pessoas é a ambição. E também esta tendência para a sociedade de consumo. Quando vejo publicidade na televisão, digo a mim mesmo: podem me apresentar isto anos a fio que nunca comprarei nada daquilo que mostram. Nunca desejei um belo automóvel. Nunca desejei outra coisa senão ser eu próprio. Posso caminhar na rua com as mãos nos bolsos e sinto-me um príncipe."
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