terça-feira, maio 26, 2009

Ensaio sobre contra-cultura

A Contracultura Ontem e Hoje

Ensaio escrito por Armando Ferreira de Almeida Jr.*

Ainda não foi dada à contracultura a exata dimensão de seu papel nas transformações das relações sociais vividas no mundo ocidental nestas três últimas décadas.

Acredito que o motivo maior para tal demérito ao assunto, deveu-se em parte à incomum maneira de se manifestar, que lhe dava um aparente ar de alienação e, muito mais, à inédita temática que a contracultura colocou em cena em dimensões nunca antes vividas. Pela primeira vez na história da humanidade, enormes massas humanas, mais especificamente jovens, informalmente se organizaram em todo o mundo ocidental, para lutar com paz e amor. Não exatamente contra a miséria e a fome. Contra temas que em geral vêm oprimindo aos homens desde os primórdios das sociedades humanas, independentemente da classe social a que pertençam. Temáticas que não dizem respeito apenas a um país ou a um possível segmento de fanáticos. Mas, a toda uma aldeia global.

O que se trouxe à baila, sem dúvida, não faz parte do tradicional território político. O que se contesta, são tabus culturais e morais. Os costumes e os padrões de nossa sociedade judaico-cristã. Nossas tradições e preconceitos. Enfim, nossas instituições sociais.

De certo modo, vou dizendo o que entendo por contracultura no decorrer desta minha reflexão. Defini-la daria pano para muita manga. E nos desviaria um pouco do assunto. O Woodstock e Maio de 68 na França são seus mais indiscutíveis marcos. A partir deles a contracultura adquiriu universalidade. Quanto a isto, creio que já haja um consenso. Tenho certeza que principalmente depois destes acontecimentos nunca mais fomos os mesmos. É isto, em parte, o que pretendo mostrar.

Por ter se insurgido contra toda uma enorme teia de padrões sociais por onde se exprime o poder no mundo ocidental, diria que a contracultura é sociologicamente um fenômeno de proporções continentais, que em seus desdobramentos vem sutilmente tornando menos repressivas as normas e os padrões de existência no planeta. Pelo que deixou enraizado em nossa cultura ocidental, tudo indica, continua fazendo sair "dos prédios para as praças uma nova raça". Como dizia uma canção de Moraes e Galvão.

Como enquadrar na nossa tradição marxista a análise de um fenômeno social que não tem sua expressão na luta de classes? Como conceber que uma pessoa da classe dominante possa ser oprimida. Ainda mais supor que ela também possa ser discriminada? Não há como negar que ela, em várias situações, também é. Enquanto mulher, negra e homossexual; por exemplo. Esta é uma questão que transcende a luta de classes.

A natureza dos assuntos tratados pela contracultura, por perspectivas diversas, foi tema de grandes pensadores de nossa cultura ocidental.

"De perto ninguém é normal", diz o nosso poeta Caetano Veloso na canção Vaca Profana. Freud, com minhas palavras, diz mais ou menos assim: sem querer pintar todas as ovelhinhas de preto, somos todos neuróticos. Precisamente foi em "Mal Estar na Civilização", que Freud se referiu desta maneira à sua teoria da neurose. Ensaio como ele mesmo disse, imbuído pelo "sentimento oceânico" de um amigo. Que o fez escrever este livro, que deve ser seu mais sociológico ensaio. Para ele, a vida em sociedade nos impõe normas e padrões de coexistência que necessariamente implicam em repressão a nossos instintos. Motivo que faz a todos um tanto neuróticos. Uma síntese a grosso modo, desta parte do pensamento Freudiano, nos permite expressar o assunto assim: a essência da sociedade é a repressão aos indivíduos.

Marcuse chama a atenção em seu livro "Eros e Civilização", que a psicologia individual de Freud é também uma psicologia social. Muitos não enxergam deste modo.

Uma das mais brilhantes definições que conheço sobre o objeto de estudo da sociologia foi escrita por Durkheim. Em "As Regras do Método Sociológico". Segundo ele, a sociologia é a ciência que estuda as instituições sociais. Para reconhecermos o que é uma instituição social, diz , basta que qualquer um vá de encontro a ela. "A consciência pública reprime", assim se expressou. Basta contestar, por exemplo, as relações sociais de casamento, as relações familiares, o comportamento sexual estabelecido, os estamentos raciais, a religião, as leis e a linguagem. Todas, instituições sociais. Espaço onde gravitou a contracultura.

(É bom sempre lembrar, que a linguagem foi o primeiro produto social dos homens. No início de tudo foi o verbo. Sabiamente é assim que a Bíblia se inicia. Toda linguagem contém uma concepção de mundo e delimita o campo de visão dos homens. Dou esta pausa porque a contracultura e seus desdobramentos, vêm sistematicamente dando uma nova cor à linguagem e aos códigos estabelecidos. Ela foi riquíssima quanto à variedade de formas em que se exprimiu para propor uma nova maneira de agir, pensar e sentir).

Para Marx, a relação de troca, que é a base de nossa civilização, eminentemente mercantil, esconde as relações sociais que lhe são intrínsecas. O valor dado às mercadorias para a troca mercantil cria um hieróglifo social que lhe dá um ar de fenômeno natural. Para que haja a troca devem existir regras, e principalmente, instituições como a da propriedade; que se sustentam no universo das leis e dos costumes.

Ao comparar o pensamento dos três, podemos ver muito de comum entre eles quanto ao entendimento de como se estruturam os fundamentos da civilização. Para Freud, sem a repressão aos instintos humanos não há sociedade. Para Marx, junto com Engels, em "A Ideologia Alemã", a vontade coletiva está sempre acima da vontade individual nas sociedades humanas. E isto se exprime na realidade cotidiana "...como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais é partilhado o trabalho". Vista sobre a ótica de Durkheim, a vida social é inteiramente feita de representações que são instituídas no direito e nos costumes; vigilantes quanto à conduta dos cidadãos.

Todos falam de uma entidade além de nós. Para Marx, esta entidade é simbolizada pelo Estado e seus aparelhos de sustentação. Em Durkheim, a civilização institui deveres aos cidadãos para além deles através de suas instituições. Na linha do pensamento freudiano, o conceito de "inconsciente coletivo", criado por Jung, representa melhor este poder social além de nós.

O Woodstock visto por olhos desavisados não passou de um concerto de rock de proporções gigantescas. É no mínimo uma estupidez não se interrogar sobre o sentido histórico de um acontecimento tão rico de significados. E que espantou a todo o mundo. Um espetáculo sem precedentes na história. Inimaginável que um show musical pudesse mobilizar tantos jovens, por tanto tempo. Mesmo sabendo que estariam tão mal acomodados. Devia haver entre eles uma identidade de propósitos para com a vida muito forte. Algo que os unia além deles mesmos.

O que mais assustou não foi tanto o grau de organização demonstrado. A partir do Woodstock, tomou-se idéia do tamanho da confraria, que os 500.000 jovens, que conseguiram se reunir naquela fazenda perto de Nova York, representavam. Em 1969 já formavam uma grande família. (Calcula-se que um milhão de pessoas não tiveram como chegar ao local. A área foi considerada de calamidade pública, pela falta de condições para abrigar tanta gente. A expectativa dos organizadores era de 50.000 pessoas). Foram três noites e três dias sem nenhuma violência. Embalados pela música. Reunidos por proporem uma sociedade diferente.

Aqueles jovens estavam assumindo diante dela, uma outra atitude de vida. Com uma forma e um conteúdo bem pouco convencionais. Estranhamente eram bárbaros e doces. Não eram o que se poderia chamar, "jovens bem comportados". Mas, eram lindos e falavam em paz e amor. Na aparência, eram o protótipo da alienação. Ao mesmo tempo, na essência, ameaçavam a moral vigente. Usavam drogas. Não pregavam a antropofagia ou o incesto. Porém, questionavam na prática até a monogamia. E propunham um conceito diferente de família. Em comunidades um tanto atípicas. (Que para muitos era coisa de comunista).

Era um tanto fácil identificar a "tribo". A maioria já tinha um modo incomum de se expressar também na maneira de se vestir. Eu diria até, que nunca a roupa e o penteado comunicaram tanto. (E a nudez também). Rockeiros, freaks, beatniks, cabeludos, psicodélicos, motoqueiros, filhos da guerra fria, andarilhos, malucos, Yppies, hippies. Independentemente do nome que lhes seja dado, já estavam por aí contestando os costumes estabelecidos. E se proliferavam. Espécie na mais franca expansão. Mais exatamente desde o final da década de 50 com a "Beat Generation", diga-se de passagem. (Jorge Mautner e José Agripino de Paula são bons exemplos no Brasil).

Há até quem tenha confundido esta tribo com anarquistas, que pregam a extinção do Estado e de seus aparelhos de manutenção ideológica. Não é o caso. O que se pregava era uma mudança mais realista nas regras sociais que vêm conduzindo o nosso "processo civilizatório".

Para mim o Woodstock representa um salto mais radical na contracultura que Maio de 68 na França. Sem com isto, querer diminui-lo. Os europeus que fizeram maio de 68 foram no social produto da liberdade que o surrealismo, o dadaísmo, o cubismo e o existencialismo representaram na arte, na literatura e na filosofia de nosso século. Entretanto esta versão européia da revolução cultural e ideológica que nascia, ainda estava muito impregnada de uma mentalidade tradicional do fazer político. Questões econômicas de camponeses franceses se misturavam aos assuntos que efetivamente mais marcaram a contracultura e lhe fez diferente: questões mais gerais da superestrutura ideológica.

Os acontecimentos de Maio de 68 estavam presos a um conceito limitado de política. Onde os costumes ainda eram tratados como problemas menores. Faltava entender que sempre que se age para transformar o mundo se está fazendo política. Não há dúvida que na França também se deu prioridade à luta ideológica, contudo as palavras de ordem "gozem sem entraves" e "é proibido proibir" não são questões da mesma esfera das lutas pela redução de impostos. As barricadas e a violência também marcaram esta época. A contracultura, ao contrário, foi um acontecimento essencialmente pacífico. Mais na linha de Gandhy. Da desobediência civil.

Os franceses também tiveram contra si um enraizamento cultural e institucional inegavelmente muito mais solidificado que os americanos. O que além de fazê-los mais conservadores, os fez encontrar uma resistência mais feroz do establishment. A guerra do Vietnã, o rock and roll, os beatniks, uma população mais comprometida com a idéia de criar um novo mundo e um desenvolvimento capitalista mais avançado, entre outros fatores, explicam porque "a coisa" partiu com mais consistência e com menos resistência dos Estados Unidos. Por que ao Pato Donald é negada a consciência social? Estava acontecendo nada mais, nada menos, que a velha dialética de transformação das sociedades humanas: o desenvolvimento das forças produtivas impulsionando as relações de produção. Estávamos naquele momento, lançando o homem à lua e tornado realidade, com os Beatles cantando All You Need Is Love, a primeira transmissão via satélite para o planeta.

A contracultura foi mais que tudo, uma luta no campo da ideologia e das relações de reprodução da vida social. No plano das instituições sociais e da "espiritualidade". Radicalmente pacífica e mais despida dos preconceitos dos europeus quanto à dimensão política das lutas ideológicas. Menos discurso formal e mais prática informal.

É um equívoco muito comum pensar-se as relações sociais de produção reduzidas às relações de trabalho. Esquece-se de que toda relação de produção (que é social) é ao mesmo tempo uma relação de reprodução da vida social. Do mesmo modo, como passa em branco para a maioria, que a primeira divisão do trabalho foi feita entre homem e mulher, e se solidificou no casamento e na família. Em outras palavras, os homens não produzem a vida social apenas através das relações de trabalho, eles a produzem e reproduzem principalmente através de suas instituições sociais. A contracultura extrapola o ambiente de trabalho. Ela é resultado de um outro tipo, ainda mais forte, de sintonia entre as pessoas.

Em a "Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" Engels, ao tratar da "produção e reprodução da vida imediata" vê o assunto da seguinte maneira: "A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro."

É também por puro preconceito que não se foi a fundo até agora no significado da contracultura para todos nós. Difícil citar a contracultura sem nos depararmos com o mal utilizado clichê: "sexo, drogas e rock and roll".

Parece um fato que a música consegue romper a barreira das línguas com muito mais facilidade que qualquer outra forma de expressão. Não por outro motivo foi quem mais viabilizou a universalidade de uma nova consciência. Ajudou inclusive a romper, com mais facilidade, as diferenças de formação intelectual dos jovens de várias partes do planeta. Um típico fenômeno de massas.

Não consigo pensar no papel que a música teve na contracultura sem me remeter a Nietzsche aos 27 anos, em "A Origem da Tragédia no Espírito da Música". Não consigo assistir a um concerto de rock sem imaginar-me em um ritual dionisíaco. E ver no cantor um sacerdote. Onde todos entram em transe e perdem a noção de tempo e espaço. Tal qual um ritual religioso, quando nele estamos por inteiro em seus cânticos. Somente a música, única das artes que não necessita materializar-se para nos tocar a alma, para poder nos permitir este encontro com os deuses. (No candomblé não é diferente).

Segundo Nietzsche a transformação do ritual dionisíaco em tragédia teatral coincide com o início da decadência da fase helênica e o surgimento da civilização ocidental, nos modos como ainda hoje ela se apresenta.

Foi a vitória da razão sobre a intuição, disse Nietzsche. Ou nas palavras de Yoko Ono, a vitória das virtudes masculinas sobre as femininas. Nietzsche, viu uma saída. Sonhou um super-homem, que seria resultado da superação destas amarras sociais. Yoko Ono, junto com John, enfrentou costumes por um planeta menos dividido, menos repressor, menos inquisidor e menos porco chauvinista. Mais humano. "Demasiadamente humano". A contracultura foi mais intuição que razão. Por isto estou convencido que ela acrescentou uma ótica feminina à sociedade ocidental. Abriu alas para as mulheres.

Podemos afirmar que foi, principalmente através da música de influência pop que esta geração mais se expressou e se comunicou. Já eram tempos de mass mídia. Creio que não por outro motivo é que na música estão de alguma maneira, boa parte de nossos melhores poetas modernos. Quando digo nossos, falo da maioria dos países onde a contracultura vem sendo diluída ao longo desses anos. Os artistas são a antena da raça(fazendo uma paródia com frase de Ezra Pound). Naquele momento o mundo se espantava em ser os Beatles mais conhecidos que Jesus Cristo.

A contracultura também teve seus intelectuais letrados no sentido clássico. Mas aqueles que melhor traduziram o momento, escolheram a canção popular de massa, como sua arma mais quente. No Brasil, Caetano e Gil são um dos melhores exemplos destes intelectuais orgânicos. Formadores de opinião de enormes multidões. Sempre afinados com os princípios de liberdade que tomaram corpo a partir da contracultura. Já como tropicalistas, além do que representam para todos nós, também foram pais e filhos da contracultura no Brasil. Contribuíram muito para criar uma nossa versão da modernidade que se apresentava ao mundo através dela.

Pode-se dizer que está nos princípios da contracultura, lutar contra tudo que venha de encontro à quebra da individualidade e do direito de fazer com o próprio corpo o que bem lhe convier; direito fundamental de todo ser humano. Entre outras, a questão das drogas se insere também neste contexto. Somente a moralidade impede a sua legalização. O consumo delas não deve ser um caso de polícia. Elas devem estar na alçada do Ministério da Saúde. Hoje em dia vem sendo muito discutida. Contraditoriamente a "discriminação" das drogas vem sendo aceita como a arma mais letal ao narcotráfico. Além do que, reconhece-se que a prisão de consumidores de drogas só tem contribuído para criar bandidos. Elas devem ser sim, um caso para orientação, compreensão, ajuda no tratamento e apoio na recuperação. A experiência da contracultura com as drogas, em muitos momentos trágica, nos ensina hoje a conviver com elas.

Parece indiscutível que são heranças da contracultura, na maneira em que estão hoje organizados, os movimentos de luta pela igualdade de direitos para as mulheres e em defesa dos homossexuais. Os movimentos anti-racistas e pela legalização das drogas. São também filhos da contracultura os movimentos pacifistas e as coloridas e "performáticas" passeatas contra a guerra e pelo equilíbrio ecológico.

Em suma, as questões dos hoje, chamados movimentos de minorias, (que em realidades são de imensas maiorias éticas), tomaram corpo e universalidade a partir da contracultura.

A revalorização da cultura oriental, em si uma contestação da cultura ocidental, que presenciamos na três últimas décadas, tomou corpo sobretudo nesta época. Data também daí, a voz dada por muitos neste período, às populações sem voz. (assim chamadas por mim, aqui, porque elas têm a característica comum, de não terem quase sempre nenhuma condição de racionalizar o pensamento nos moldes da lógica formal). Refiro-me às crianças, aos loucos e índios, entre outros. E à anti-psiquiatria, os movimentos em defesa das populações indígenas, e às tímidas incursões de luta em torno dos direitos das crianças, mais especificamente.

Não só a religiosidade ocidental foi posta em xeque pela confrontação com outras maneiras de ver o mundo e as coisas. Até mesmo os hábitos alimentares e o conceito de saúde foram postos contra a parede.

A lista é muito extensa. O raio de abrangência é tão grande, que não estaria me arriscando em afirmar que a contracultura mudou a cara do mundo ocidental. Ela promoveu uma nova visão de mundo. ( Como deixar de lembrar Luís Carlos Maciel? - O livro dele, uma preciosidade de ensaios sobre o assunto, não por acaso se chama "Uma Nova Consciência").

Fala-se muito em duas vertentes de contestação assumida pela juventude no início dos anos 70. Uma, militante, clandestina e até terrorista. E outra, de confrontação pelo distanciamento assumido quanto as formas de organização social. O estereótipo destas vertentes de contestação é a atitude hippie e a guerrilheira. Possivelmente, um resultado daquela má compreensão do fazer político, mencionada acima.

A história de Gabeira é uma história de final feliz na direção da extinção desta cega visão. Um bom exemplo de uma síntese daquelas duas vertentes. Quando retornou, nos tempos da anistia e da abertura política, contribuiu para que parte da mencionada vertente mais militante e partidarista da juventude brasileira, e da que estava se formando nas greves estudantis, ainda muito impregnada de uma prática estreita, quebrasse tabus. O que ele trazia para discussão eram ironicamente temas que os herdeiros mais diretos da contracultura já vinham, como minhocas, fazendo a terra respirar mais aliviada.

Pessoas como ele ajudam a ampliar a base de um novo consenso. (Não deixa de ser um sinal de evolução política o fato de que hoje, quase todos os partidos políticos no Brasil não deixem de incluir, em suas quase sempre enganosas plataformas, várias questões das "minorias").

Depois de Gramsci me espanta que o ser político seja, ainda, apenas o militante de um partido registrado. Ou engajado na vida partidarista oficial. Desconhece-se o elementar; a vida social nos obriga a tomar partido a todo instante. O conceito de sociedade civil é bastante utilizado por Gramsci, sobretudo para mostrar a natureza orgânica de uma sociedade. Para ele "todo homem exerce uma certa atividade intelectual, adota uma visão de mundo, uma linha de conduta moral deliberada, e contribui portanto para defender e fazer prevalecer uma certa visão do mundo". Acho que não foi por outro motivo que os temas por ele mais bem acabados na prisão, foram reunidos em um livro que não poderia ter outro título:"O Intelectual Orgânico".

Um pensamento só é hegemônico em uma sociedade quando uma maioria lhe garante legitimidade. Independentemente dos partidos políticos de uma nação. Somente através do alargamento da base de consenso se torna possível fazer prevalecer uma nova maneira de pensar.

A contracultura não foi propriamente um movimento anti-capitalista. Ao mesmo tempo, manifestou-se contra a cultura estabelecida. Exatamente porque o que ela põe em questão é tão antigo quanto a civilização. Depois dela passamos a lutar por um novo modo de viver já. Aqui e agora. A contracultura plantou uma nova idéia de família, de casamento, das relações sexuais; de uma outra atitude para com a natureza, para com o próprio corpo e para com Deus. Ela cobrou uma adequação da superestrutura às mudanças na infra-estrutura do mundo ocidental.

Longe de mim achar que são hegemônicas na sociedade contemporânea as transformações sociais que tomaram curso a partir da contracultura. Não tenho dúvidas entretanto, que elas vêm alargando a sua base social de consenso progressivamente, através das sementes que plantou em boa parte desta geração que agora atinge a maturidade e vem criando seus filhos com outra maneira de ver as coisas instituídas. Ao criar novas personalidades os homens vão modificando as relações de produção da vida social. As lutas ideológicas têm a característica de poderem ser vitoriosas mesmo sem a tomada do poder. É o que diz Gramsci.

Os que comungaram e os que ainda comungam com as idéias de liberdade aqui discutidas foram e ainda são, por muitos, tratados como alienados. Diria que esta é maneira de ver muito própria ao maniqueísmo stalinista. Como os que assim si expressam, em geral mamaram no pensamento marxista, não me resta outra alternativa senão mais uma vez, ressuscitar o velho Marx.

Marx falava que havia uma dialética na natureza das transformações das forças produtivas. Uma luta entre contrários. Atento a analisar o modo de produção capitalista, era natural que ele concentrasse suas atenções na produção industrial. Ela era a melhor expressão da técnica daquele momento. Segundo ele, se a ampliação constante da divisão do trabalho, no interior da indústria, por um lado aliena os homens, na medida em que cada vez mais os especializa e os torna distante do conhecimento e da consciência social, por outro lado, a indústria, contraditoriamente é sempre obrigada a reunir, em número sempre maior, mais pessoas num mesmo ambiente de trabalho. Não por outro motivo seriam os operários industriais a vanguarda das transformações sociais. Pela facilidade de organização e conseqüente poder de pressão que o ambiente industrial possibilita.

Mais de um século depois somos forçados, no mínimo, a ampliar o raio de ação de suas idéias. Por forças produtivas devemos entender não apenas tecnologia, mas também know-how. Conhecimento. O desenvolvimento tecnológico que presenciamos neste fim de século caminha célere no sentido de eliminar fronteiras entre povos e nações. Os meios de comunicação estão socializando o conhecimento. Eles vêm contribuindo para sintonizar um espantoso número de agentes sociais dentro e principalmente, fora de seus ambientes de trabalho. Como se não bastasse, não se pode diminuir o poder de pressão de muitas categorias sociais do setor terciário e mesmo do primário. O conhecimento saiu do papel e das escolas. Ele foi para o rádio, o cinema, a televisão. Viaja hoje via satélite, pelo telefone e pela Internet. A sociedade atual se organiza de modo bem diferente daquela vivida por Marx.

Esta é mais uma contradição no desenvolvimento do capitalismo. Desde os primórdios o controle sobre o saber tem sido instrumento vital aos que sustentam o poder. Parece que não se percebe, que quando se intenta socializar a produção o que se pretende em última instância, é a socialização do consumo. Isto inclui o saber. Ele não pode ser patrimônio de classes sociais. Nem de um modo de produção específico. Ele é da humanidade. Quando Chico Buarque resolve se apresentar na televisão, quem mais lucra com isto não é a Souza Cruz, eventual patrocinador do evento, mas o povo brasileiro. Naquele momento, privilegiada multidão.

Ao rever o filme Woodstock nos espanta o grau de lucidez dos depoimentos registrados em relação aos motivos de tamanha sinergia.

Além de alienação, duas outras palavras são muitos utilizadas para diminuir a contracultura: massificação e consumismo. Geralmente são usadas de modo elitista e preconceituoso. Nelas está subentendido que o que é feito em série, em grande quantidade, é ruim. É de baixa qualidade. Em outras palavras, o que é da massa não presta. Para os que assim pensam recomendo a leitura de "A Obra de Arte na Época de Suas Técnicas de Reprodução", de Walter Benjamin. Essencial ao entendimento da modernidade. O desenvolvimento das técnicas nos impõe fenômenos culturais de massa. Em Benjamin percebemos porque todo aumento na quantidade dos que consomem termina resultando quase sempre, num crescimento da qualidade coletiva.

Mesmo sem condições de me debruçar em mais detalhes, me arrisco a intuir algumas contribuições da contracultura que tenho certeza, a muitos parece pura digressão:

Acho que a contracultura, sem receio de exagerar, mas por lhe querer o devido lugar, também nos ajuda a entender a implosão democrática do bloco socialista. A queda do muro de Berlim. A voluntária atitude desarmamentista da União Soviética. Acontecimentos com um grau de civilidade sem precedentes na história.

Vejam que oportuna reflexão de Freud: é de se supor, segundo ele, que a "...civilização constitua um processo que a humanidade experimenta a serviço de eros, cujo propósito é combinar indivíduos isolados, depois famílias e, depois ainda raças, povos e nações numa unidade da humanidade".

O que fez as nações mais poderosas passarem a ter mais respeito pela autonomia dos povos? Em parte, não poderia ser atribuída a uma nova consciência dos homens? Que mudança de consciência não implica em modificação das instituições sociais? Não há civilização sem cultura. E também sem contracultura. Nunca ela e a economia foram tão planetárias. Quem poderia pensar outra solução para o apartheid na África do Sul? Esta é mais uma prova de que a força por si só não basta ao exercício do poder. Será que estas transformações se explicam apenas pelo confronto das forças políticas tradicionais? Estou convencido que há hoje uma maior consciência entre os homens quanto a necessidade da paz, e do respeito à autodeterminação dos povos, das nações, e das raças, e que é evidente uma maior preocupação pela preservação da espécie e do planeta. Impensável falar sobre o pacifismo, nestas três últimas décadas, sem citar a contracultura.

Rumo à preservação da espécie, a paz e o desarmamento são quase uma imposição ao mundo contemporâneo. A terceira guerra mundial pressupõe a inexistência da quarta.

Mais uma vez o conhecimento do mundo vem desembocando em sua própria transformação. Mais uma vez o modo de produção social, cria seus próprios meios de superação.

A contracultura tem a ver com tudo isto porque ela cobrou-nos uma nova maneira de pensar e sentir. Uma nova sensibilidade para os homens. Sensibilidade que hoje em dia, é mais que nunca determinada pela história.

O desenvolvimento econômico atual já permite a toda a humanidade superar as questões materiais da luta pela sobrevivência.

Não foi por motivos econômicos que a maioria das nações civilizadas embargou relações comerciais com a África do Sul. A "imoralidade" a que tinha chegado o apartheid, face a uma nova visão de mundo necessária à vida contemporânea, fez surgir uma nova moralidade diante do fato. Que, de certa maneira, as fez realizar um boicote global de peso. Difícil de suportar no grau atual de internacionalização das economias. Do mesmo modo como aconteceu com a escravidão no passado.

Finalizando. O que os herdeiros dos beatniks e seus desdobramentos vem intentando mudar faz surgir um novo bloco histórico e ideológico. Que vai se formando sutilmente, como a maioria dos processos que resultam em efetiva transformação social. O inconsciente coletivo também é produto da história. Creio que, ao contrário do que possa parecer, é exatamente por sua contemporaneidade que os temas levantados pela contracultura não caducaram. As resistências à sua sedimentação no conjunto da sociedade ainda são muito grandes. Ultimamente, vêm sendo muito reforçadas com o advento da AIDS. Mas ao mesmo tempo convocadas a um debate mais franco.

A tomada do poder pressupõe uma nova consciência. Uma nova ideologia. Somente com novos olhos se pode construir um mundo novo. "Olhos Novos para o Novo", dizia Oswald de Andrade, nosso antropofágico poeta. O consenso necessário à conquista da hegemonia política pressupõe sempre uma nova maneira de ser. Por isto, para que não venha a implodir, a sociedade contemporânea ocidental tem sido obrigada a discutir, entre outras mudanças, a legalização das drogas e do aborto. A conviver com uma nova visão das relações sexuais, do casamento, das relações raciais e com a natureza. E a ter que aceitar o divórcio, a quebra do tabu da virgindade, o uso da pílula e atualmente a camisinha (estupidamente condenada pela igreja). Etc e etc.

Penso que quando John Lennon cantou "o sonho acabou", na música God, ele não estava desistindo de uma nova consciência social. De um modo de ser que o fez, e a muitos, sonhar. Aqueles versos soam como um alerta contra atitudes extremas. Contra a idolatria. Naquele momento se falava no fim da era de aquários. Momento de reavaliação. Início de uma nova atitude. Era preciso que aqueles versos soassem como um "se toque". "Encare a realidade de frente". "Seja mais você, com suas opiniões". John Lennon sabia disto. Se assim não fosse, ele não teria composto a canção Imagine, pouco tempo depois. Nem achado que valia a pena pedir uma chance à paz. Ele convocava a todos a mudar o mundo em suas entranhas.

Já havia a certeza que só se modifica a sociedade por dentro. Dela participando. Pondo em prática e defendendo as nossas idéias no dia-a-dia. Na vida cotidiana. Em casa, na rua e no trabalho. No interior da família, do casamento, no comportamento sexual e social. "Esses feitos afetariam toda a gente da terra. E nós veríamos nascer uma paz quente"(Caetano Veloso).

Um lugar comum é dizer-se que o "sistema absorveu" as contestações da contracultura. Para muitos "o sonho acabou" significa isto. Uma vitória conservadora, nesta luta entre duas visões de mundo. Luta entre hegemonias. Para muitos, os sonhos foram triturados pela sociedade de consumo. Por que não ver por outra ótica? Por que não considerar que uma sociedade que absorve outras maneiras de ser é uma sociedade modificada? Exatamente por ter uma nova maneira de ser, ela é uma sociedade diferente. Que mudou qualitativamente em sua hegemonia.

Invés de achar, por exemplo, que o sistema absorveu os movimentos afros na Bahia, sou levado a crer que foi a revalorização das origens africanas que modificou mais recentemente a Bahia. O orgulho mais à mostra de sua gente, lhe deu mais personalidade.

"apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks de todos os tempos uni-vos". Caetano Veloso extraído da canção "ele me deu um beijo na boca", gravada no disco "cores nomes". 1982.


referências bibliográficas :

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução. In A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95, 1969.

BROWN, Norman Oliver. Vida Contra Morte. Petrópolis, Vozes, 1974.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1977.

FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.

GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978.

MACCIOCCHI, Maria-Antonietta. A Favor de Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974.

MACIEL, Luís Carlos. Uma Nova Consciência. Não disponho dos outros dados.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1975.

MARX, Karl. O Capital (Crítica da Economia Política). Livro: O Processo de Produção do Capital). Volume 1. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1975.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Lisboa, Editorial Presença e Livraria Martins Fontes, 1980.

MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação - como extensão do homem (understanding media), Cultrix, São Paulo, 1964.

NIETZSCHE, Friedrich. A Origem da Tragédia no Espírito da Música. Editora Portuguesa. Não me lembro da editora e do ano de publicação. Nem do ano.

RISÉRIO, Antônio. Carnaval Ijexá. Editora Currupio, Salvador-BA, 1981.


* Sobre o autor:

ARMANDO Ferreira de ALMEIDA Júnior, é economista, com tese de mestrado sobre "Relações de produção em um Perímetro Irrigado da Codevasf, em Juazeiro-BA" - 1986.

Ensaio escrito para servir de base a uma palestra em um ciclo de debates sobre o assunto, realizado em Salvador-BA, no mês de abril de 1996.


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