Nesse Dia Internacional do Rock, meu segundo conto sobre o cotidiano fantástico é em homenagem a um dos pais do gênero, o Blues.
— Tem alguém nesse banco, meu jovem?
— Tem alguém nesse banco, meu jovem?
O rapaz no bar era alto e se curvava sobre o balcão olhando para uma parte do vazio que não se podia identificar. Aparentava uns 25 anos, talvez mais, com um penteado à Elvis um pouco bagunçado e barba de alguns dias. Vestia um jeans escuro amassado e uma camisa simples preta. Ouvindo o estranho, ergueu os olhos do seu copo de aguardente e piscou algumas vezes, como despertando de um devaneio, antes de dizer:
— Senhor?
— Não me recordo de ter adquirido nenhum escravo, não sou seu senhor.
— E eu não costumo tratar ninguém como superior, só não entendi o que você disse.
— Perguntei se havia alguém sentado aqui.
— Podia haver alguém aí até antes de eu chegar.
— Está sozinho?
— Na maior parte do tempo.
Não era possível definir a idade daquele senhor. Vestia um terno negro com uma camisa branca aberta no peito. Um chapéu de feltro negro com uma fita de seda cinza cobria seu cabelo grisalho. Tomou lugar no balcão, acendeu um cigarro e pediu uma dose de uísque. O balconista serviu a bebida e lhe ofereceu um cinzeiro. O velho tragou demoradamente seu cigarro, virou-se para o jovem e perguntou:
— Onde estão seus amigos?
— Em algumas das cidades por onde passei.
— Não tem amigos aqui?
— Não na minha definição de amigo.
— E sua namorada?
— Não tenho uma.
— Por quê?
— “Por quê”?
— Sim, por quê?
O jovem tomou sua aguardente de um trago, estalou os dedos pro balconista e apontou o copo vazio. Pensou um pouco enquanto observava a cachaça envelhecida sendo despejada no pequeno copo até enchê-lo e disse:
— É uma boa pergunta.
— Já teve uma namorada?
— Não.
— Como! Você já teve tempo suficiente para se apaixonar a essa idade.
— A que idade, vovô?
— Bom, você tem quantos anos? Vinte e cinco, vinte e seis?
— Vinte.
— Não minta pra mim, rapaz.
— Eu nunca minto, acho um erro estúpido de se cometer. Não raro as pessoas pensam que sou mais velho. Deve ser minha aura amena, meu ki em repouso: “ar de velho”. Mas como esse tipo de coisa não faz sentido, creio que meus trejeitos acabam expressando a tranqüilidade que eu penso ter. Jovens não são calmos.
— Realmente. Você é sempre assim?
— Sempre, pouca coisa me abala.
— Isso é muito bom, rapaz.
— Pois é. Ambrose Bierce diz que a paciência é uma forma menor de desespero, disfarçada em virtude.
— Você não me parece desesperado.
— E não sou. Sou indiferente demais para me desesperar.
— Então você não se importa com nada?
— Com muito pouco. Não conheço muitas coisas que importem.
O velho deu uma boa puxada no seu cigarro e tomou um gole de uísque. Demorou a soltar o ar. Soprou a fumaça na direção do copo e aquela imagem, iluminada pela luz fraca do bar, era inegavelmente bonita. O balcão brilhava com algumas manchas de copos de meia hora atrás.
— Aceita um cigarro, rapaz?
— Eu não fumo.
— Se importa que eu fume perto de você?
— Nem um pouco.
— Você não parou de contrair as narinas desde que eu acendi o cigarro.
— Eu não gosto do cheiro.
— Então você se importa – disse o velho, puxou a chama do cigarro quase até o filtro e o apagou no cinzeiro. Soltou a fumaça pelas narinas devagar.
— Se você não tivesse falado comigo, eu teria saído do balcão.
— Não me parece justo.
— Nem a mim, mas prefiro isso a pedir para a pessoa apagar o cigarro.
— Ela tira seu direito de respirar e você não quer tirar o dela de fumar, você é mesmo muito tranqüilo.
— Pelo menos eu tenho direito de me afastar de pessoas assim.
— Tem razão, me desculpe.
— Relaxa – disse o jovem erguendo uma mão espalmada e sorrindo com os lábios. Tomou mais um gole da sua cachaça.
— Que espécie de lugar é esse?
— Qual lugar?
— Esse bar.
— É agradável, nunca entrou aqui?
— Não. Tem um rádio tocando Bukka White. Quem conhece Bukka White?!
— Você.
— E você, pra saber que é o próprio.
— Eu venho muito aqui, conheço toda a maldita coleção de blues desse cara.
— Achei que ninguém mais ouvia blues, meu jovem.
— E não ouvem. Não eles. Mas seres como esse taberneiro aí se alimentam de blues.
— Que tipo de seres?
— Poetas, esses ratos.
O velho se recostou no balcão para enxergar o outro lado e viu um sujeito vestindo uma bermuda e chinelos, com uma camisa aberta até o último botão mostrando sua pança respeitável e seu peito peludo, sentado numa poltrona, batendo um pé ritmado no chão e balançando a cabeça, com um sorriso no rosto e olhos fechados.
— Eu o conheci. – disse o jovem – Costumava atender os clientes pessoalmente. Pelo menos alguns deles. Mas parou há um bom tempo.
— Por que ele parou? – quis saber o velho.
— Percebeu que ninguém valia o que ele servia em seus copos americanos.
— Ele deve ter ficado muito amargurado para pensar que um homem não vale sequer um copo de uísque.
— Não foi o que eu disse.
— Eu não entendo.
— Aqui não se servia essa bebida ordinária que nós tomamos para esquecer quem somos.
— Há tempos eu não esqueço – disse o velho, virando o copo abandonado no balcão de um trago e pedindo outro para o garçom com o mesmo estalar de dedos do jovem. Percebeu ser eficiente. Tinha um copo cheio em mãos quando perguntou: “e o que se servia aqui?”
— Ausência, delírio, luxúria, melancolia, memória, silêncio, sonho, amor... O amor desse rato faria você chorar antes de tomar fôlego para um segundo gole. A luxúria dele deixaria você de pau duro em segundos, e depois de a sentir descendo pela sua garganta, você bateria uma punheta e gozaria no copo que acabou de esvaziar antes que percebesse que abaixou as calças.
— Mas isso é...
— Repugnante. Todos achavam isso. E mesmo assim continuavam vindo aqui. Vermes atraídos por uma satisfação maior que a vida que levavam, se arrastando por aí. Eu conheço esse buraco há um bom tempo. Devo ser a única pessoa da época da névoa que ainda vem aqui.
— Por que época da névoa?
— Era o que serviam pra gente. Idéias nubladas. Idéias são muito tênues. Mesmo sendo destiladas pelo poeta, ainda não passavam de névoa. Uma névoa deliciosa de se tragar. Pelo menos para mim era. Aposto que para todos os que se enfiavam porta adentro atrás daquelas garrafas preciosas. Luxúria era a mais procurada. Mas ninguém sabia apreciar a luxúria. São todos tolos no fim das contas. Eu me servi de luxúria uma vez. Saí pela porta antes que pudesse pensar em pagar a conta. Com uma ereção me cortando a glande. Fui à casa de uma amiga de infância que eu sempre amei, mas que nunca conheceu minhas intenções. Até o dia em que ela foi até o portão ver quem estava tocando a campainha e se deparou comigo nu na calçada. Não devia haver ninguém em casa aquela noite. Entrei fechando o portão atrás de mim e antes que ela pudesse perguntar o que acontecera às minhas roupas, já estava com minhas bolas roçando seus lábios, e uma glande pulsando na sua garganta. Eu a joguei na grama e abri suas pernas com força, me enfiei entre elas e beijei sua boca úmida de sêmen. Nunca soube se o hálito dela era bom. A fodi. Suguei cada poro da pele macia e branca, cada terminação nervosa da pele vermelha. A fodi por horas sem gozar, e quando o fiz ela já estava tão sufocada de prazer que não conseguiu dizer mais nada. Ela agüentou as duas horas e meia muito bem disposta. A deixei deitada na grama e fui embora, vendo aquela buceta rosa regando a terra. A vadia obviamente não era virgem, e nem eu queria que fosse. Teria sido horrível pra ela.
O velho não disse nada por um longo tempo e, embora o jovem achasse que veria uma expressão abismada naquele rosto estranho, ele sorriu com o canto da boca, mostrando algumas poucas rugas nas bochechas idosas.
— A poesia tem muitas faces não é, meu jovem?
— Muitos sabores, eu diria.
— Creio que se você tivesse tomado amor naquela noite, você estaria acompanhado agora e eu não teria ocupado um banco ao seu lado no balcão.
— Quem sabe? Eu não gostaria de voltar no tempo e testar. Talvez minhas próximas garrafas fossem melancolia, memória, ausência e, de todo modo, o rato não as serviria mais.
— Você nunca mais a viu?
— Vi, claro que vi. Mas a partir daquele dia ela não era nada além de uma buceta molhada na minha presença. E eu não tinha mais tesão nenhum por ela. O gênio dela é que me excitava, mesmo ela tendo seios ótimos.
— E quando foi que o poeta deixou de servir sua poesia engarrafada?
— No dia seguinte ao que eu saí sem agradecer a ele. Eu era o único cliente que considerava o que ele fazia como algo incrível, que o cumprimentava pelo seu talento. Quando até EU saí sem ao menos erguer um copo em homenagem ao rato, ele desistiu de destilar idéias. Ou ainda o faz, mas não as tira mais da cabeçorra redonda. Ele tem uma aparência muito melhor desde então. Parece mais feliz.
— Pelo menos os bluesmen o entendem. – disse o velho, olhando mais uma vez para o poeta sentado, agora com as mãos postas sobre a barriga e o pescoço recostado na poltrona, ouvindo Professor Longhair assobiar uma canção bucólica.
— NÓS o entendemos, mas eu nunca consegui me desculpar. Só posso vir aqui e beber um pouco dessa aguardente. – virou o copo, fechando os olhos e batendo no balcão com a garganta queimada – Nenhum outro buraco me acolhe tão bem. Não me sinto bem lá fora. A indiferença me consome nas ruas.
— E aqui dentro não?
— Não... – disse o jovem estalando os dedos para o garçom – Porque aqui eu ainda tenho uma esperança. O garçom me disse que o rato tem uma garrafa que ninguém jamais pediu. Eu tenho esperança de que ele me perdoe um dia e me sirva essa garrafa, em nome dos velhos tempos.
— Que garrafa é essa?
— O entusiasmo... eu me tornei indiferente. Livrei-me da dor, dos casos de amor fracassados, da decepção pelos prazeres inalcançáveis, da preocupação, da culpa, da insônia. Mas com tudo isso se foi a inspiração para a única coisa que eu sabia fazer bem.
— E o que você fazia, rapaz? – disse o velho curioso, fechando o terno com frio.
— Blues.
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